Disponível
livremente em farmácias, sem necessidade de receita médica, o paracetamol está
entre os remédios mais consumidos de todo o mundo.
Para
ter ideia, algumas estimativas apontam vendas de 49 mil toneladas desse
medicamento ao ano nos Estados Unidos — o que significa 298 comprimidos por
americano a cada 12 meses. No Reino Unido, a média é de 70 unidades desse
fármaco por pessoa durante o mesmo período.
E o
mais curioso dessa história é que, apesar de ser conhecido há mais de um
século, o paracetamol ainda está cercado de mistérios: o mecanismo de ação dele
ainda não foi completamente desvendado pelos cientistas.
As
evidências sobre a eficácia dessa medicação para diversos incômodos também
variam — em alguns casos, como a dor na lombar, os efeitos do comprimido ou das
gotas não são superiores aos do placebo, uma substância que não tem efeito
terapêutico algum.
Uma
coisa que está bem clara para os especialistas, porém, é o risco de overdose:
esse medicamento é a principal causa de falência do fígado em países como EUA e
Reino Unido (veja dados abaixo), o que gerou alertas de várias entidades de
saúde nos últimos anos.
Por
trás desse cenário, está a alta disponibilidade dos comprimidos e a falta de
orientações sobre os limites de consumo, como você vai entender ao longo desta
reportagem.
A
BBC News Brasil entrou em contato com a Johnson & Johnson (fabricante do
Tylenol, um dos remédios com paracetamol mais populares) e com a Associação
Brasileira da Indústria de Produtos para o Autocuidado em Saúde (Acessa), mas
não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Já
a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) e a
Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) disseram que, por
diretrizes internas, não fazem comentários sobre questões envolvendo
moléculas/medicamentos específicos.
Do
ostracismo ao sucesso de vendas
O
paracetamol foi sintetizado no final do século 19. Os estudos pioneiros com
essa molécula foram publicados pelo químico alemão Joseph von Mering em 1893.
Mas
a substância ficou restrita às pesquisas pelas seis décadas seguintes. Ela só
estreou nas farmácias de Estados Unidos e Austrália a partir dos anos 1950, já
com o nome comercial que a tornaria mundialmente famosa: Tylenol.
Nos
EUA, aliás, esse princípio ativo é conhecido por outro nome: acetaminofeno.
No
Brasil, ele está disponível desde os anos 1970.
E,
mesmo passadas mais de seis décadas do lançamento, até hoje não se conhece o
mecanismo de ação desse remédio — em outras palavras, como ele age no corpo
para reduzir a dor ou baixar a febre.
“O
mecanismo de ação do paracetamol ainda não foi completamente esclarecido”, diz
o médico Philip Conaghan, professor de Medicina Musculoesquelética da
Universidade de Leeds, no Reino Unido.
“É
provável que ele tenha algum efeito na forma como nosso corpo ‘entende’ a dor
no sistema nervoso central e no cérebro, além de provavelmente agir em regiões
periféricas onde há inflamação”, detalha ele.
Acredita-se
que o paracetamol interfira em ações de enzimas conhecidas como ciclooxigenase,
ou COX na sigla em inglês, relacionadas à sensação dolorosa e ao aumento da
temperatura corporal. Alguns estudos também observaram uma ação da droga em
neurotransmissores e vias cerebrais, o que traria um efeito analgésico.
Mas,
até o momento, não existe um consenso entre os especialistas sobre qual ou
quais os efeitos exatos desse remédio pelo corpo para que se obtenha os
resultados de melhora da dor ou redução da temperatura corporal.
Como
citado no início da reportagem, o paracetamol está disponível livremente nas
drogarias e pode ser comprado diretamente pelo consumidor, sem necessidade de
receita médica.
Ele
aparece tanto com nomes comerciais — Tylenol, por exemplo — quanto em
genéricos, além de ser adicionado à composição de diversos medicamentos junto
de outros princípios ativos.
A
Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória dos Estados Unidos,
calcula que o paracetamol esteja na fórmula de mais de 600 produtos
farmacêuticos diferentes.
No
Brasil, o paracetamol sempre aparece no topo da lista de remédios isentos de
prescrição mais vendidos — seja como molécula única ou conjugada com outros
fármacos.
Uma
lista publicada periodicamente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) com os 263 medicamentos isentos de prescrição mais comercializados do
país revela que o paracetamol aparece em 23 das opções farmacológicas com alta
popularidade.
O
que dizem as evidências
Mas,
afinal, com tamanho sucesso comercial, o paracetamol realmente cumpre aquilo
que promete — diminuir febre e dor?
O
FDA aponta em seu site oficial que o paracetamol é uma opção para o tratamento
desses dois incômodos com intensidades leve a moderada.
Mas
evidências disponíveis até o momento variam bastante, principalmente quando são
avaliados diferentes incômodos que afligem o corpo.
O
Instituto Cochrane, que se dedica a revisar as evidências disponíveis sobre
diversos tratamentos, publicou vários trabalhos a respeito da eficácia do
paracetamol.
A
análise dos especialistas, que leva em conta os estudos publicados até aquele
momento, revelou que esse medicamento não é superior ao placebo (substância sem
efeito terapêutico) para tratar dores na região lombar.
Os
resultados também não foram positivos para os casos de incômodos físicos
relacionados ao tratamento do câncer.
Já
para lidar com artrite no joelho ou no quadril, o efeito positivo foi
considerado “pequeno” pelos autores dos artigos.
O
paracetamol também mostrou algum benefício, mesmo que mínimo, no alívio da
enxaqueca aguda e das dores pós-parto e pós-cirúrgicas.
Conaghan,
que publicou alguns estudos sobre o uso desse fármaco no tratamento da
osteoartrite, classifica as evidências como “pequenas” e “não muito boas”. Mas
ele diz entender porque o paracetamol continua popular até os dias de hoje.
“Primeiro,
há um histórico de uso, o que faz as pessoas se sentirem confortáveis em tomar
esses comprimidos. Segundo, a indicação de tratamentos com o paracetamol é
abrangente, e vai desde dores musculoesqueléticas até cólicas menstruais”,
lista o médico.
“Terceiro,
falamos de uma opção barata e amplamente disponível ao consumidor. E, em quarto
lugar, não existem muitas outras opções para lidar com esses sintomas”,
complementa ele.
Com
resultados tão variados, a principal orientação é sempre buscar a avaliação de
um profissional da saúde — principalmente se a dor não vai embora ou piora
depois de dois ou três dias.
A
partir da avaliação e do diagnóstico, é essencial seguir à risca o tratamento
prescrito para se livrar dos incômodos.
Risco
de eventos adversos
Mas
e a segurança? Será que o paracetamol pode provocar efeitos colaterais mais
graves?
O
problema aqui está na dosagem: as agências de saúde estipulam um limite de 4
gramas (ou 4 mil miligramas) por dia para os adultos. Em crianças de 2 a 11
anos, a dose de paracetamol depende do peso corporal (são de 55 a 75 mg por
quilo em um dia). Já abaixo dos 2 anos, é sempre necessário consultar o médico antes
de dar o remédio.
Como
os comprimidos comumente trazem 500 miligramas ou 1 grama desse princípio
ativo, isso significa que um adulto não pode ultrapassar as quatro ou oito
unidades (a depender da dosagem) a cada 24 horas.
Mas
a história é mais complicada que parece, pois muitos remédios trazem o
paracetamol na composição junto de outras substâncias — com isso, uma pessoa
que está gripada ou resfriada, por exemplo, acaba ingerindo diversos fármacos
para lidar com os sintomas (dor, febre, nariz entupido…) e pode ultrapassar sem
querer esse limite.
O
principal problema aqui acontece no fígado, responsável por metabolizar o
fármaco. Cerca de 5% do remédio se transforma em quinoneimina, uma substância
tóxica para o corpo.
Em
pequenas quantidades (abaixo desse limite de 4 gramas de paracetamol), o fígado
consegue neutralizar o perigo. Porém, quando há muita quinoneimina, o órgão
entra em parafuso e deixa de funcionar como o esperado.
Isso,
por sua vez, gera um quadro de falência hepática aguda, que não raro demanda
internação e transplante, além de estar relacionado ao risco aumentado de
morte.
Segundo
a FDA, as overdoses de paracetamol foram a principal causa de falência hepática
aguda nos Estados Unidos entre 1998 e 2003. Em 48% dos casos, a overdose foi
acidental, pois as vítimas sequer sabiam que tinham ultrapassado o limite
diário.
Um
estudo de 2007 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano estima
que a overdose por esse medicamento leva a 56 mil visitas ao pronto-socorro, 26
mil hospitalizações e 458 mortes por ano.
Outros
levantamentos apontam que o paracetamol é a causa de falência hepática em até
45% dos casos registrados nos EUA e 60% dos episódios do tipo que ocorrem no
Reino Unido. Não há levantamento semelhante para o Brasil.
Todos
esses números exigiram mudanças nas regulamentações sobre o paracetamol. Desde
2011, a FDA limitou a dosagem do remédio a 325 mg por comprimido — o que
reduziu as hospitalizações nos anos seguintes, segundo um estudo da
Universidade do Alabama, nos EUA, publicado em 2023.
No
Brasil, a Anvisa já publicou diversos alertas sobre o consumo indiscriminado do
paracetamol e os efeitos disso na saúde.
“O
uso do medicamento deve ser feito com cautela, sempre observando a dose máxima
diária e o intervalo entre as doses, conforme as recomendações contidas na
bula, para cada faixa etária”, orienta a agência em comunicado de 2021.
Efeitos
na sociedade
Também
é curioso notar que o paracetamol, com mais de um século de história e alguns
mistérios persistentes, ainda é capaz de surpreender os cientistas.
Exemplo
disso é o trabalho feito pelo psicólogo Dominik Mischkowski, da Universidade de
Ohio, nos Estados Unidos.
Num
estudo de 2019, ele dividiu voluntários em dois grupos. O primeiro tomou
paracetamol, e o segundo engoliu comprimidos sem nenhum efeito terapêutico.
Depois, todos leram uma história inspiradora e tinham que reagir a ela.
Os
participantes que tomaram paracetamol tinham uma habilidade reduzida de sentir
empatia, ou de se colocar no lugar do personagem da história. E isso
eventualmente teria implicações na forma como as pessoas interagem em
diferentes contextos sociais, aponta o cientista.
“Se
interfiro em determinados circuitos neurais com uma droga como o paracetamol,
por exemplo, posso acabar afetando outros aspectos que chamamos de emoções
sociais, ou comportamentos sociais, sobre os quais inicialmente nem pensávamos.
E isso, quem sabe, pode ser uma espécie de efeito colateral social dessas
drogas”, diz Mischkowski.
O
próprio psicólogo pondera que os resultados, apesar de interessantes, são
experimentais e não refletem a realidade, que é muito mais intrincada e cheia
de variáveis do que um experimento controlado em laboratório.
“Quando
as pessoas tomam remédios para dor, há muitos processos complexos envolvidos
sobre os quais não entendemos. Então quero ser muito cuidadoso sobre o nosso
achado, pois não sabemos ainda os detalhes sobre os efeitos do consumo [do
paracetamol] na sociedade”, explica ele.
“Então,
se você está com dor e precisa de tratamento, deve sempre continuar a tomar os
remédios como paracetamol, porque isso é importante. A dor é uma das condições
mais impactantes da atualidade”, complementa Mischkowski.
Já
para Conaghan, o uso massivo de remédios para a dor, como o paracetamol, ajuda
a entender como nossa sociedade se modificou nas últimas décadas.
“Suspeito
que muito de nossa crença nos remédios começou após a Segunda Guerra Mundial,
quando os antibióticos se mostraram tão bem sucedidos. Até então, acredito que
meus avós não tinham tanta confiança assim nos comprimidos”, opina o médico.
“E
as intervenções para tratar a dor podem levar um certo tempo e esforço para
surtir resultado. A dor no joelho, por exemplo: nós sabemos que alongamentos
musculares são muito efetivos, mas vai demorar pelo menos duas ou três semanas
de exercícios diários antes de você notar qualquer benefício.”
“Então,
acredito que esse imediatismo dos remédios é outra coisa que nos faz
procurá-los tanto. Talvez essa crença cultural nos medicamentos e a necessidade
de alívio imediato para a dor sejam algumas das razões para tamanha
popularidade do paracetamol”, conclui ele.
Fonte:
BBC News
